A indústria de energia está passando por uma profunda transformação, da qual a geração distribuída de energia e a mobilidade elétrica (e-mobility) são dois importantes fatores. Blockchain apresenta-se nesse contexto como uma tecnologia capaz de habilitar novos modelos de negócios que promovam o uso eficiente da energia distribuída para atender a demanda energética dos veículos elétricos.
A mobilidade elétrica e os desafios para o setor de energia
A crescente demanda por energia elétrica mundial deve acelerar ainda mais nos próximos anos com o crescimento das soluções de mobilidade elétrica. Em 2018 o número de veículos elétricos ultrapassou a marca de 5 milhões de unidades e, segundo previsões da indústria automobilística, seus preços devem se tornar equivalentes aos dos veículos a combustão em 2025, o que pode levar os veículos elétricos a representar 30% da frota mundial até 2030.
A recarga das baterias de um veículo elétrico pode ser feita em eletropostos de abastecimento públicos ou mesmo em residências. Os eletropostos públicos normalmente utilizam um sistema de recarga rápida, com potência acima de 40 KW, em que a operação de recarga leva em torno de 20 a 30 minutos. Já a recarga convencional, que pode ser feita em residências com pequenas adaptações à instalação elétrica e utilizando uma potência mais baixa, pode levar 8 horas ou mais.
Para o sistema elétrico, os veículos elétricos representam uma nova carga, com demanda equivalente a uma unidade consumidora, com uma residência, de carga média (algo próximo a 240 KWh). Além da capacidade elétrica necessária para atender a essa nova demanda, as características específicas dessa carga (como seu aspecto de mobilidade) representam desafios adicionais para o sistema elétrico.
Dessa forma, a necessária adaptação do sistema elétrico e a criação de uma infraestrutura pública de eletropostos são elementos essenciais para a viabilização da mobilidade elétrica em larga escala. A geração distribuída de energia pode ser uma peça importante nesse quebra-cabeça.
A geração distribuída e a mobilidade elétrica
Tradicionalmente, a energia elétrica é gerada de forma centralizada por grandes usinas localizadas em regiões distantes dos centros de consumo. A energia elétrica gerada nessas usinas precisa ser transmitida até os locais de consumo, o que é feito pelas concessionárias de transmissão e distribuição.
Já a geração distribuída de energia, que vem se tornando mais comum nos últimos anos, é caracterizada pelo uso de geradores de pequeno porte, normalmente utilizando fontes de energia renováveis como a solar e a eólica, localizados próximos aos locais de consumo.
No caso dos painéis solares, não é incomum instalações residenciais que atendem diretamente uma residência específica. Nesse contexto, os clientes da concessionária que possuem instalações de geração local são chamados de prosumidores (do inglês, prossumers), uma vez que eles são tanto produtores quanto consumidores de energia.
Assim, a geração distribuída de energia de fontes renováveis, como a eólica e a solar, vem se consolidando em todo o mundo como uma alternativa para suprir a crescente demanda por energia e também para combater os avanços do aquecimento global.
Por estarem próximos aos locais de consumo, esses Recursos de Energia Distribuídos (REDs) podem ser utilizados para atender à demanda dos veículos elétricos de forma eficiente, reduzindo os investimentos em sistemas de transmissão de energia, assim como as inevitáveis perdas decorrentes da transmissão, que ocorrem quando energia é gerada de forma centralizada.
Como a tecnologia de Blockchain promove modelos de negócios descentralizados, de modo que seu uso pode ser adequado para a recarga de veículos elétricos a partir de recursos de energia distribuídos.
Blockchain na recarga de veículos elétricos
Blockchain pode ser comparado a um livro de razão em que são registradas transações. Os dados são armazenados de forma descentralizada nos computadores que fazem parte do sistema, por isso Blockchain é chamada de Distributed Ledger Technology (DLT). Os registros de diferentes transações são armazenados de forma encadeada, de modo que as informações de novos registros somente possam ser validadas se todos os registros anteriores permanecerem intactos.
Assim, essa tecnologia promove a descentralização de registros de transações, eliminando a necessidade de uma autoridade central, já que tanto o registro como a validação das transações são feitos pelos próprios computadores (ou nós) que fazem parte do sistema. Além disso, Blockchain é considerado uma solução transparente (já que todos os nós da rede podem ter acesso às informações armazenadas), altamente segura (já que os dados armazenados dificilmente podem ser alterados), de alta confiabilidade e disponibilidade (já que o sistema continua a operar normalmente mesmo que um, ou alguns, nós da rede deixem de operar).
Dentro dessa infraestrutura distribuída e segura do Blockchain, contratos inteligentes (smart-contracts) possibilitam a efetivação de transações de forma automática pelo sistema. Os contratos inteligentes podem ser entendidos como trechos de programas (códigos computacionais) que são executados durante a realização de uma transação. Esse mecanismo pode ser utilizado para garantir que termos de contrato e regras de negócio (como preço de um ativo, saldo disponível etc.) sejam automaticamente verificadas pelo sistema durante a execução de uma transação, reduzindo custos e aumentando a eficiência desses processos.
A aplicação mais conhecida da tecnologia Blockchain é o Bitcoin, uma moeda virtual que possibilita a realização de transações financeiras peer-to-peer (P2P), isso é, sem o intermédio de instituições financeiras como os bancos. O uso da tecnologia no setor de energia também começa a ser explorado, sendo o mais comum a comercialização direta de energia entre produtores e consumidores de energia renovável.
Blockchain pode também ser utilizada no contexto de recarga de veículos elétricos, possibilitando que as transações de energia, assim como seu pagamento, possam ser realizadas através dessa plataforma distribuída. Em especial, a tecnologia permite que a energia distribuída, limpa e renovável gerada por prossumidores possa ser utilizada para a recarga de veículos elétricos de terceiros.
Share&Charge, por exemplo, é um piloto de uma plataforma aberta de recarga de veículos elétricos, desenvolvido pela startup alemã MotionWerk, que utiliza a tecnologia de Blockchain. Essa platafoezrma permite o compartilhamento de eletropostos privados com outros motoristas de veículos elétricos. Ou seja, é uma espécie de marketplace em que proprietários de eletropostos podem compartilhar seus pontos de recarga com terceiros, definindo também as condições de uso, como horários de disponibilidade e o preço da energia.
Os motoristas podem utilizar o App da plataforma para encontrar um eletroposto disponível, realizar a operação de recarga e efetuar o pagamento, que é feito através de uma moeda virtual própria da plataforma (criada através do Blockchain). Assim, as transações de recarga e pagamento são todas realizadas através do Blockchain, reduzindo a participação das concessionárias de energia e dos bancos nesse processo e, consequentemente, reduzindo os custos das operações.
Esse mecanismo de compartilhamento promove o investimento privado na infraestrutura de recarga e também na geração de energia distribuída. Imagine que, em um futuro não muito distante, você possa ter uma residência com painéis solares para a geração da energia elétrica consumida na residência e para recarga de seu veículo elétrico. Além de garantir sua própria autonomia de energia, você poderia ainda vender o excesso de energia gerada para outros motoristas de veículos elétricos, proporcionando um retorno sobre o investimento feito na infraestrutura de geração e recarga.
Esse exemplo mostra como a tecnologia de Blockchain pode ser utilizada no contexto de recarga de veículos elétricos, em uma solução que incentiva o investimento privado na infraestrutura de recarga e geração de energia distribuída, dois elementos fundamentais para a viabilização da mobilidade elétrica em larga escala.
Isso tudo feito em uma plataforma distribuída que reduz o papel de instituições intermediárias (como bancos e, nesse caso, concessionárias de energia), o que, em última análise, pode levar a uma redução do preço da energia. É importante lembrar que a regulamentação é um elemento fundamental para a viabilização do uso da tecnologia nesses novos modelos de negócios.
Problemas e limitações
Blockchain é uma tecnologia recente que tem despertado a atenção de vários setores pela sua capacidade de habilitar novos modelos de negócios. Entretanto, o uso da tecnologia, em especial em aplicações essenciais como no setor de energia, ainda é bastante discutido.
Um dos pontos frequentemente questionados é a capacidade de escalonamento de soluções baseadas em Blockchain, já que algoritmos de consenso em sistemas distribuídos podem demandar excesso de tempo, capacidade de processamento e energia, o que poderia inviabilizar alguns casos de uso. Soluções para esse e outros problemas técnicos têm sido propostos pela comunidade e sua eficácia será comprovada na medida em que essas soluções forem validadas pelas empresas do setor.
Em particular para o setor de energia, que é tradicionalmente um segmento altamente regulado, questões de regulamentação também são vistas como essenciais para que novos modelos de negócios possam ser de fato colocados em produção. Entretanto, assim como já vimos em outros setores da economia, startups e empresas do setor já estão propondo soluções baseadas em Blockchain em cenários ainda não completamente regulados. Essas propostas serão essenciais para validar a tecnologia e gerar os requisitos de regulamentação necessários a serem endereçados pelos órgãos competentes de cada país.
Em matéria recente, a Forbes apontou para a crescente participação de empresas de grande porte, criando soluções e consórcios para setores específicos, inclusive para o setor de energia elétrica, o que deve trazer maior amadurecimento para a tecnologia nos próximos anos.
Por: Frederico Gonçalves
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